Em maio, quando ainda estava lendo Tia Julia e o Escrivinhador, de Mario Vargas Llosa, prometi ao meu amigo Gabriel Fabri que publicaria aqui no blog a resenha que ele escreveu. Mas aí entrei no meu “período sabático” e a resenha ficou ali, esquecida no meu pen drive.
Mas, como promessa é dívida, aí está a resenha. Que, por sinal, é ótima.
Cinquentões à beira de um ataque de nervos
Romance peruano é o encontro do melodrama com o surrealismo
Mario Vargas Llosa, vencedor do Nobel de Literatura em 2010 e autor de Tia Júlia e o Escrevinhador, volume três da coleção de Literatura Ibero-Americana da Folha de S.Paulo, revela logo no prólogo de sua obra, publicada em 1977, o motivo de seu grande êxito: a proximidade com o melodrama, considerado por ele uma de suas grandes fraquezas, a que o autor não consegue resistir nesse romance autobiográfico.
O livro conta a transição da adolescência para o início da vida adulta de Llosa, marcada, principalmente, pela contratação de um estranho Pedro Camacho, para escrever as novelas da radio em que trabalha, e pela chegada de sua tia Júlia, que vai da Bolívia ao Peru para arrumar um marido. Apesar de iniciais desavenças, Mario inicia um romance secreto com sua parente, que tinha quase a idade para ser sua mãe.
A estrutura da obra chama a atenção por intercalar com o enredo algumas das novelas que Camacho escrevia para a rádio, sempre nos capítulos de números pares. Como é próprio desse tipo de narrativa, o gênero melodramático é evidente nas situações exageradas, às vezes absurdas, e personagens complicados e passionais que permeiam as histórias, com um diferencial: no foco das tramas estão homens de cinquenta anos, “na flor da idade”, ao contrário das mulheres, que costumam ser o centro dos melodramas. A maneira como se desenrolam essas histórias paralelas, sempre com antecipação a uma tragédia e um desfecho em aberto, é surpreendente, todavia fica ainda melhor e mais instigante quando essas histórias começam a se cruzar de maneira surrealista. É como se Pedro Almodóvar (Mulheres à Beira de um Ataque de Nervos, Volver) fizesse um filme com David Lynch (Cidade dos Sonhos) – aliás, Llosa não esconde a influência do surrealismo na sua obra, que se torna o grande diferencial de Tia Júlia, ao citar o cineasta espanhol Luis Buñuel.
O melodrama em Tia Júlia e o Escrevinhador não é exclusivo das novelas de Camacho. O romance do autor com sua tia também se encaixa nesse subgênero, podendo ser considerado também uma divertida novela – com um final, um pouco decepcionante, mas que condiz perfeitamente com essa narrativa. Com uma linguagem leve, descontraída e em alguns momentos até escrachada, Llosa conduz ambas as narrativas com maestria e bom humor. O olhar que o ganhador do Nobel tem de seu passado é peculiar: ao mesmo tempo em que debocha de Pedro Camacho, admira-o. Seria ele uma inspiração ou seu próprio alter ego? Não fica claro quem é o escrevinhador do título, pois apesar de esse ser um adjetivo usado duas vezes para Camacho, o mesmo pode ser atribuído a Llosa. Afinal, sua obra é uma novela composta de várias outras e os dois possuem o mesmo amor pela escrita. Seria Camacho algum tipo de reflexo, o “duplo” do autor?
Um melodrama divertido com viés surrealista. Esse é Tia Júlia e o Escrevinhador, um livro delicioso e surpreendente, com um conteúdo que vai muito além de uma autobiografia comum.