É frequente dizer que a obra de Ernest Hemingway é muito marcada pela imagem do soldado ferido, herói que se desaponta com a brutalidade vã da guerra e busca, inutilmente, escapar de seus horrores.
Também é comum relacionar esta imagem com a própria experiência de Hemingway durante a primeira Grande Guerra Mundial. Assim como Frederic Henry, o protagonista de Adeus às Armas, Hemingway trabalhou em ambulâncias de guerra nos campos de batalha italianos, tendo sofrido graves ferimentos durante os bombardeios.
Nesta fotografia, o jovem Ernest Hemingway se recupera de ferimentos sofridos durante a guerra.
A cena em que o personagem Frederic Henry é atingido por um bombardeio (de maneira nada heroica, aliás, enquanto enfiava um pedaço de queijo na boca ao lado dos companheiros) é particularmente chocante. Hemingway é um autor que começou a carreira como repórter em jornais da cidade de Kansas City, e talvez por esta razão tem uma prosa bastante objetiva e livre sentimentalismos. Acho que foi justamente a frieza nas descrições de cenas pavorosas de guerra o que mais me impressionou até agora em Adeus às Armas.
Escolhi um trecho do livro pra ilustrar isso que estou falando. É o momento logo após o bombardeio, em que Henry é socorrido e transportado em uma ambulância para um posto hospitalar. Repare bem no estilo de Hemingway e tire suas próprias conclusões.
Modelo de ambulância usada na Primeira Guerra Mundial.
“A dor que o cirurgião tinha anunciado começou e de tal modo que tudo ao redor de mim deixou de me causar interesse. A ambulância inglesa aproximou-se, puseram-me numa padiola e nela me engavetaram na ambulância.
Fiquei ao lado de outro engavetado, um homem de cuja cara eu só podia ver o nariz – um nariz cor de cera. Ele respirava com esforço. Havia outros engavetados em cima de mim. O inglês alto mostrou a cara e anunciou:
– Vou guiar lentamente e espero que tenham uma boa viagem.
Senti o motor sendo ligado, e que ele subira ao assento do veículo, na frente. Senti o freio sendo destravado e a embreagem engatada. Então, partimos. Eu fiquei deitado imóvel, deixando que a dor me tomasse.
A ambulância subia a estrada devagar, era mais devagar no meio do tráfego, às vezes parava e às vezes recuava um pouco. Então, afinal, começou a aumentar a velocidade. Senti pingar alguma coisa em mim. A princípio, devagar, um pingo regular, que foi se intensificando e afinal se transformou num fluxo contínuo. Gritei chamando o inglês. Ele parou o carro e espiou pelo orifício.
– O que há?
– O homem da padiola de cima está com hemorragia.
– Já vamos chegando – foi a resposta – Sozinho, não posso tirar essa padiola – Daí, pôs o carro em marcha.
O fio de sangue continuava. Ali no escuro não pude verificar de que ponto da padiola superior ele descia. Procurei afastar-me para um dos lados, pois assim o sangue não cairia sobre mim. Onde havia pingado sobre minha camisa estava quente e pegajoso. Sentia frio, minha perna doía tremendamente. Pouco depois, o fio de sangue foi afinando; voltou a ser apenas gotas. Apalpei a lona da padiola superior. O homem parecia mais acomodado.
– Como ele está? – perguntou o inglês. -Estamos quase chegando.
– Acho que está morto.
As gotas iam escasseando, como as que caem de um pingente de gelo depois que o sol se recolhe. Estava cada vez mais frio ali dentro. No posto, no alto da montanha, tiraram aquela padiola e substituíram por outra – e a ambulância prosseguiu a viagem.”
Ernest Hemingway. Adeus às Armas (ed. Bertrand Brasil, págs 76-77)