Quando a guerra deixa de ser sagrada

Adeus às Armas é, ao mesmo tempo, uma história de amor e uma história de guerra.

Mas até que ponto estas são duas coisas diferentes? Será possível escapar da guerra, ou a própria vida, em si, é uma guerra?

Acompanhe o momento em que o protagonista Frederic Henry, um soldado americano servindo o exército italiano, começa a questionar os ideais que levavam milhares de jovens cheios de saúde a perderem suas vidas nos fronts de guerra.

Soldados italianos nas trincheiras.

“Calei-me. Eu sempre me embaraçava com as palavras sagrado, glorioso, sacrifício inútil. Nós as tínhamos escutado muitas vezes, de longe, debaixo da chuva, quando só as palavras mais gritadas eram ouvidas, e as tínhamos lido em proclamas pregados nas paredes, sobre outros proclamas.

Mas não víamos nada sagrado em torno, e as coisas gloriosas não mostravam glória nenhuma. Os sacrifícios seriam como os dos matadouros de Chicago, só que lá fazem outras coisas com a carne que, aqui, enterramos.

Havia muitas palavras que não suportávamos – e por fim só os nomes dos lugares tinham dignidade. Certos números, nomes e datas eram tudo o que poderíamos pronunciar com alguma significação. Palavras abstratas, como glória, honra, coragem, sagrado, eram obcenas, ao lado dos nomes concretos das cidades e rios, dos números dos regimentos e das datas.”

Ernest Hemingway. Adeus às Armas (ed. Bertrand Brasil, pág. 205)

Souvenir de guerra

Para nós, da geração pós-John Lennon, o tema do soldado que conclui que toda guerra é estúpida e que o melhor fugir para as montanhas pode soar pouco original.

Não é preciso muito exercício de imaginação, porém, para voltar cem anos no tempo e perceber que, na Primeira Guerra Mundial, as coisas não eram assim.

Durante séculos, a humanidade glorificou a guerra.

Tente se lembrar dos personagens históricos mais antigos de que você já ouviu falar nas aulas de História. Em quem você pensa? Júlio César? Marco Antônio? O Rei Arthur? Todos homens poderosos, de grande inteligência estratégica. Todos excelentes generais.

Fiz uma pequena pesquisa na internet e encontrei diversos exemplos de como a guerra, a luta pela pátria, era vista como a mais nobre das ocupações humanas. São cartões postais trocados por soldados italianos com a família durante a Primeira Guerra, ou seja, no mesmo ambiente em que lutava o protagonista de Adeus às Armas, de Ernest Hemingway.

“Glória aos defensores da pátria”

“Fora bárbaros”

“Saudações da zona de guerra”

Em 1909, um poeta chamado Filippo Marinetti publicou no jornal francês Le Figaro um texto chamado Manifesto Futurista, que ficou conhecido como um dos mais importantes escritos desta vanguarda modernista, vindo a conquistar muita popularidade entre a juventude da época.

Quer saber o que ele defendia? Pois veja um dos trechos mais famosos:

9. Nós queremos glorificar a guerra – única higiene do mundo – o militarismo, o patriotismo, o gesto destruidor dos libertários, as belas idéias pelas quais se morre e o desprezo pela mulher.

Manifesto Futurista, 1909

Alguma dúvida da ousadia e originalidade do livro de Hemingway?

Adeus às Armas e a fuga do soldado ferido

É frequente dizer que a obra de Ernest Hemingway é muito marcada pela imagem do soldado ferido, herói que se desaponta com a brutalidade vã da guerra e busca, inutilmente, escapar de seus horrores.

Também é comum relacionar esta imagem com a própria experiência de Hemingway durante a primeira Grande Guerra Mundial. Assim como Frederic Henry, o protagonista de Adeus às Armas, Hemingway trabalhou em ambulâncias de guerra nos campos de batalha italianos, tendo sofrido graves ferimentos durante os bombardeios.

Nesta fotografia, o jovem Ernest Hemingway se recupera de ferimentos sofridos durante a guerra.

A cena em que o personagem Frederic Henry é atingido por um bombardeio (de maneira nada heroica, aliás, enquanto enfiava um pedaço de queijo na boca ao lado dos companheiros) é particularmente chocante. Hemingway é um autor que começou a carreira como repórter em jornais da cidade de Kansas City, e talvez por esta razão tem uma prosa bastante objetiva e livre sentimentalismos. Acho que foi justamente a frieza nas descrições de cenas pavorosas de guerra o que mais me impressionou até agora em Adeus às Armas.

Escolhi um trecho do livro pra ilustrar isso que estou falando. É o momento logo após o bombardeio, em que Henry é socorrido e transportado em uma ambulância para um posto hospitalar. Repare bem no estilo de Hemingway e tire suas próprias conclusões.

Modelo de ambulância usada na Primeira Guerra Mundial.

“A dor que o cirurgião tinha anunciado começou e de tal modo que tudo ao redor de mim deixou de me causar interesse. A ambulância inglesa aproximou-se, puseram-me numa padiola e nela me engavetaram na ambulância.

Fiquei ao lado de outro engavetado, um homem de cuja cara eu só podia ver o nariz – um nariz cor de cera. Ele respirava com esforço. Havia outros engavetados em cima de mim. O inglês alto mostrou a cara e anunciou:

– Vou guiar lentamente e espero que tenham uma boa viagem.

Senti o motor sendo ligado, e que ele subira ao assento do veículo, na frente. Senti o freio sendo destravado e a embreagem engatada. Então, partimos. Eu fiquei deitado imóvel, deixando que a dor me tomasse.

A ambulância subia a estrada devagar, era mais devagar no meio do tráfego, às vezes parava e às vezes recuava um pouco. Então, afinal, começou a aumentar a velocidade. Senti pingar alguma coisa em mim. A princípio, devagar, um pingo regular, que foi se intensificando e afinal se transformou num fluxo contínuo. Gritei chamando o inglês. Ele parou o carro e espiou pelo orifício.

– O que há?

– O homem da padiola de cima está com hemorragia.

– Já vamos chegando – foi a resposta – Sozinho, não posso tirar essa padiola – Daí, pôs o carro em marcha.

O fio de sangue continuava. Ali no escuro não pude verificar de que ponto da padiola superior ele descia. Procurei afastar-me para um dos lados, pois assim o sangue não cairia sobre mim. Onde havia pingado sobre minha camisa estava quente e pegajoso. Sentia frio, minha perna doía tremendamente. Pouco depois, o fio de sangue foi afinando; voltou a ser apenas gotas. Apalpei a lona da padiola superior. O homem parecia mais acomodado.

– Como ele está? – perguntou o inglês. -Estamos quase chegando.

– Acho que está morto.

As gotas iam escasseando, como as que caem de um pingente de gelo depois que o sol se recolhe. Estava cada vez mais frio ali dentro. No posto, no alto da montanha, tiraram aquela padiola e substituíram por outra – e a ambulância prosseguiu a viagem.”

Ernest Hemingway. Adeus às Armas (ed. Bertrand Brasil, págs 76-77)

36º livro: Adeus às Armas

Minha primeira experiência com uma obra de Ernest Hemingway foi tão intensa que não quero mais parar!

Na mesma livraria em que comprei, com desconto, O Velho e o Mar (a Martins Fontes Paulista, já falei dela várias vezes por aqui), o vendedor me indicou também Adeus às Armas que, segundo ele, é uma das obras primas do escritor americano.

Se O Velho e o Mar é uma obra da maturidade de Hemingway, Adeus às Armas foi publicada quando ele tinha 30 anos, em 1929. Muitos se referem a este romance como quase autobiográfico, porque tem semelhanças enormes com a experiência pessoal de Hemingway como voluntário da Cruz Vermelha durante a 1ª Guerra Mundial.

Mas, na verdade, a história de amor entre o tenente americano Frederic Henry e a enfermeira Catherine Barkley tem apenas relação parcial com os amores vividos pelo próprio Hemingway durante a Guerra.

Mas mesmo assim costuma ser apontada como uma das mais belas e comoventes histórias de guerra da literatura americana – e olha que os americanos escrevem muito sobre guerras.

Comecei a leitura há alguns dias. Já vi que vai ser inesquecível.