Estou encontrando uma certa dificuldade de separar um trecho de Cinzas do Norte para colocar aqui no blog.
Não consigo achar nenhum trecho que possa ser compreendido isoladamente, que sirva como um pequeno aperitivo da história e dê vontade de saber mais.
Neste livro, a gente é jogado no meio da história sem qualquer explicação sobre quem são e o que fazem os personagens, quem é parente de quem, quem é rico e quem é pobre, nada.
Levamos alguns capítulos tateando no escuro até que as coisas comecem a fazer sentido. O que, pensando bem, é uma maneira bem mais realística de narrar – na vida a gente não tem uma “explicação” clara sobre cada pessoa que vai passando pelo nosso caminho, precisamos de meses (às vezes anos, às vezes décadas) para compreender qual será o papel delas na nossa história.
Tive a mesma sensação quando li Adeus às Armas, de Ernest Hemingway. O narrador não está preocupado em esclarecer nada, ele simplesmente joga o leitor dentro da história. E a gente é que tem que se virar para pegar o fio da meada!
E que meada, viu.
Tanto em Adeus às Armas quanto agora em Cinzas do Norte eu fui fisgada pela história de um jeito que parece que é a minha própria vida que está sendo contada. Como definiu a crítica Beatriz Velloso, o escritor Milton Hatoum faz parte da espécie rara de escritores que conseguem “transformar ficção em memória”.
Já que não consigo separar um trecho interessante para colocar aqui no blog, deixo vocês com a crítica que ela publicou na revista Época em 2005, ano de lançamento de Cinzas do Norte.
Amargura fulminante
No romance Cinzas do Norte, o escritor Milton Hatoum constrói uma história triste e irresistível
BEATRIZ VELLOSOMilton Hatoum integra a rara cepa de escritores capazes de transformar ficção em memória. Seus livros têm aroma, sabor e textura; têm temperatura e umidade, são repletos de ruídos e sons. À medida que a leitura avança, detalhes como ‘o cheiro de limão, alho e pimenta’ que vem de uma cozinha ou ‘a gritaria de peixeiros, ambulantes e carregadores’ num porto de Manaus vão formando uma espécie de repertório de lembranças na mente do leitor. E uma trama inventada, criada com riqueza de imaginação e destreza narrativa, torna-se uma história tão real que parece ter sido vivida de fato. Foi assim com Relato de um Certo Oriente (1989), obra de estréia do autor, com o seguinte,Dois Irmãos (2000) e agora, a bordo de uma amargura fulminante, com Cinzas do Norte, que chega às livrarias na terça-feira 16. A história se passa, mais uma vez, na capital amazonense, cidade natal de Hatoum. É um enredo aflito e desgraçado. Ao final, o livro deixa o gosto do passado que assombra o presente, difícil de digerir.
Cinzas do Norte conta a trajetória de dois amigos. Lavo, que narra tudo em primeira pessoa, é um órfão, criado por Ranulfo e Ramira, dois tios pobres, irmãos da mãe falecida. Mundo, ou Raimundo, nascido numa família rica e decadente, vive numa contenda cruel com o pai, que despreza a rebeldia e os talentos artísticos do filho, com quem disputa o amor da mulher, Alícia, mãe do garoto. No correr das páginas, vão surgindo intrigas e vínculos mal resolvidos entre os dois núcleos, e tudo é desvendado com sutileza – às vezes apenas sugerido. Outros narradores somam-se a Lavo, e as diferentes versões da história acabam por formar um círculo que se fecha apenas nas linhas finais.
Desavenças familiares, competição pelo amor de uma mulher e rivalidade entre pai e filho (como no novo romance) ou entre irmãos (como no anterior) são temas recorrentes na curta porém vigorosa bibliografia de Hatoum. Nascido numa cidade meio isolada do resto do Brasil, o escritor morou também em Brasília, Paris e Barcelona, e atualmente vive em São Paulo. ‘Sou um pouco desses dois personagens, dividido entre ficar na província e sair para o mundo’, diz o romancista. Esse desejo de pertencer a algum lugar e a sensação permanente de deslocamento, onde quer que se esteja, são outros dilemas comuns aos personagens. Manaus, com seu calor opressivo e suas fronteiras ilhadas por braços de rio, é uma espécie de clausura para os protagonistas de Cinzas do Norte. Mas sair de lá não representa liberdade. Mundo circula pelo Rio de Janeiro, por Berlim e Londres, apenas para se perceber preso ao passado que sua cidade de origem representa: ‘Minha reclusão não é atributo da geografia’, conclui ele, numa carta a Lavo.
Pequenas porções de realidade parecem ser peças importantes na literatura de Hatoum. A própria história do autor serve como base – ainda que, diga-se, o romance não seja autobiográfico. Mesmo assim, o escritor, arquiteto por formação, parte de fundações reais para erguer sua ficção. Os dois protagonistas são contemporâneos de Hatoum, nascidos no início dos anos 50. Ao longo da trama, acompanham o que ele mesmo viu: o golpe de 1964, os Anos de Chumbo, o milagre econômico e a abertura. O colégio Pedro II de Manaus, por onde passam Lavo e Mundo, teve como aluno o autor. ‘O escritor sempre paga um dízimo ao real’, conforma-se o autor. Com essa mistura de memória, ficção, dramas bem urdidos e detalhes que enchem a narrativa de verdade e cotidiano, Milton Hatoum enjaula o leitor, torna-o refém de sua história triste e irresistível. Cinzas do Norte é uma prisão amarga, à imagem da trajetória dos personagens. Mas nos proporciona o prazer que é a leitura de um grande romance.