Ainda pesquisando sobre a obra, encontrei este texto do falecido professor Jamil Almansur Haddad. Na verdade, não é um artigo, e sim a transcrição de uma palestra que ele comandou em 1986, durante a Semana de Estudos Árabes, na FFLCH/USP.
Achei muito interessante a forma como ele insere a principal história das Mil e Uma Noitas (a história de Sahrazad e do rei Sahriyar) na temática do feminismo.
Fico pensando: quem diria, a Sahrazad como símbolo de resistência à opressão feminina. É de se parar para refletir quando a gente vê capas de revista como esta:
Revista Time de julho de 2010, com a foto de uma moça afegã mutilada por tentar fugir da casa do marido. Saiba maisclicando aqui.
“Ao pensar em Chahrzad, lembro-me imediatamente de Ester, de Judite, de Joana D’Arc, de Mata Hari, de Afrodite, e da Nicarágua. Mas por quê? Que tem que ver uma cousa com outra? Tem que ver, porque tudo se liga, tudo se une, tudo se continua, ou, como o espanhol gosta de dizer, tudo `se conecta’, em direção a uma unidade. (…)
O que se sabe do raconto das Mil e Uma Noites é que Chahrzad contava histórias ao rei Chahryar. (…) E fato de ela contar-lhe histórias, de maneira infinita, tem um sentido imediato de luta contra a morte e um outro sentido amplo, geral, social, político, o de evitar que acabassem tendo esse destino, outras mulheres, as mulheres de seu povo. De modo que Chahrzad se liga ao mito, digamos, à figura da mulher redentora, de que a história está repleta. O que faço -partir de Chahrzad e chegar aos dias contemporâneos- é possível porque este tipo de personagem é extremamente repetitivo, ou seja, em circunstâncias iguais de opressão e havendo pessoas de determinada conformação psicológica, a personagem destes tipos de heroína vem à tona.
É nesse sentido que a Ester bíblica se relaciona com Chahrzad. Porque o que aconteceu com Ester, de acordo com a Bíblia, é que o rei Assuero, um dia, chama sua mulher Vasti e ela simplesmente não atende ao chamado, cometendo, portanto, dentro do espírito do tempo, um crime grave: o da desobediência. Para a visão oriental – e para o ciúme do macho oriental -, a desobediência é meio caminho andado, é meio adultério. A adúltera tem que ser castigada, como é o caso da pena bíblica da lapidação. Também a mágoa do rei Chahryar decorria da infidelidade das mulheres de que ele se sentia vítima. Mas, na história de Ester, o que se resolveu foi chamar os “assessores técnicos” do rei e, no caso, foi preciso buscar, por todo o país, virgens, dentre as quais fosse escolhida a sucessora da infiel. E, assim, houve requisição de mil virgens. Aí aparece a figura de Ester: ela faz o jogo da sedução, envolve o rei e salva, deste modo, as mulheres de seu povo. (…)
Na mesma linha de Chahrzad e de Ester, encontramos outra figura bíblica: a de Judite, que, para salvar seu povo, envolve, sexualmente, o rei Holofernes para matá-lo. Aliás, o que contemplamos na pintura é a imagem de Judite com uma bandeja, contendo a cabeça decepada do rei vencido, tal como aquela outra cabeça decepada que aparece nas documentações iconográficas: Salomé com a cabeça de São João Batista. Só que Judite está com o punhal, porque ela mesma decepou a cabeça, enquanto Salomé achou mais cômodo mandar que outro a decepasse por ela.
Enfim, essas mulheres são misto de Joana D’Arc, sedutora, com Mata Hari e seu complexo de espionagem, com a presença erótica de Afrodite: condensam em si toda uma gama que vai desde o amor até o sexo, em todas as variedades possíveis de amor (e, no caso, o amor sexual instrumentalizado, funcionalizado, em vista do tipo de atuação que assinalei).
E a Nicarágua? Na Nicarágua, num certo momento, realizava-se um baile, uma festa, em homenagem a um velho político. Aparece, de repente, uma jovem, querendo entrar no baile. Não tinha convite, mas o convite que tinha e o argumento que tinha era sua extraordinária beleza. E a moça entrou. Em seguida, chega o companheiro dela, exclamando que, lá dentro, sua mulher o estava traindo (sempre o problema do adultério…). E deixam-no entrar. A bela nicaraguense tira, então, um revólver de seu seio; dá-o ao companheiro, que mata o político. Hoje, ele é herói nacional da Nicarágua.
Torna-se claro que essa herança, essa hereditariedade, a transmissão de comportamento desse tipo, transcende o âmbito individual, passional das criaturas, adquirindo caráter nacional, internacional, supra-temporal.”
Leia a conferência na íntegra.