Ufa, terminei!

Foram mais de duas semanas de muito afinco para percorrer as suas 700 páginas.

Mas por fim terminei o d. Quixote I (da editora 34)!

Sim, ainda tem o segundo livro! hehehehe tremenda história comprida, não?

Mas vou deixar este segundo livro (que, pelo que informa a contracapa, contém informações adicionais, como a segunda parte “pirata” que foi feita de D. Quixote enquanto Cervantes ainda era vivo) para outra oportunidade. A história do Cavaleiro da Triste Figura é encantadora, mas é tão longa que fica um pouco cansativa.

Agora que terminei a maior parte do livro, posso dizer: definitivamente, algumas partes poderiam ser puladas… e digo mais, digo que toda a segunda metade do livro I pode ser pulada por quem não tiver muito tempo e paciência.

É isso mesmo… A partir mais ou menos da página 350, a história ganha muitos personagens novos, que começam a contar suas loooongas histórias de vida: um homem que ficou louco por amor, uma donzela que foi enganada pelo pretendente, uma moura que não fala espanhol, um guerreiro que participou da verídica batalha de Lepanto (que expulsou os turcos do mar Mediterrâneo), um garoto de 15 anos que se apaixona por sua vizinha e passa a persegui-la, sem falar dos contos e histórias que os personagens contam um para o outro.

Em outras palavras, o Dom Quixote se torna quase um coadjuvante na segunda metade, um sujeito maluco que involuntariamente promove o encontro de todos estes personagens.

As histórias até que são bacanas, não vou dizer o contrário… mas as confusões do Dom Quixote no começo do livro, durante suas andanças pelo interior da Espanha, são muuuuuito melhores!

"Dom Quixote e Sancho Pança", de Oswald Achenbach

A maneira como a loucura tomou conta dele, fazendo com que ele interprete absolutamente tudo ao seu redor como elementos das novelas de cavalaria, é a um só tempo divertido, constrangedor e comovente.

Aliás, se o Dom Quixote vivesse hoje em dia (acreditando que era um super herói como o Homem-Aranha, ou coisa assim), ele seria o perfeito “vergonha alheia”.

Mas outro personagem muito legal é o Sancho Pança. Para mim, é uma injustiça que ele não receba o mesmo destaque do Quixote. Sancho é um personagem cativante: rude e ingênuo, porém muitíssimo bondoso. É o único que permanece o tempo todo fiel ao Dom Quixote, defendendo-o e apanhando para protegê-lo. Ao contrário do mestre, que apesar da loucura é um homem extremamente culto, Sancho é um pobre analfabeto a quem os discursos pomposos de D. Quixote impressionam.

Don Quixote consola Sancho, provavelmente numa das muitas ocasiões em que ele apanha ao defendê-lo

Na sua ignorância, ele não percebe a insanidade do amo, apesar de às vezes achar meio sem sentido as coisas que ele fala. Enquanto os outros personagens não resistem à tentação de fazer troça com o pobre fidalgo que acredita que é um cavaleiro andante, Sancho se desespera com as confusões em que ele se mete, e acredita piamente que sua fidelidade será recompensada no futuro com algum título ou condado que seu mestre há de lhe dar.

A doce inocência de Sancho e a inabalável insanidade do Dom Quixote, tão grandes que são, acabam se confundindo.

É por elas que eu digo que Dom Quixote, mesmo com as suas muitas páginas e palavras difíceis, é um livro que ainda merece ser lido. Eu, que achava que não conseguiria ler até o fim, fiquei muito surpresa com o tanto que esses dois personagens me divertiram e emocionaram.

Por isso, minhas recomendações para quem quiser se aventurar pelo Dom Quixote são:

  1. Procure conhecer as tais novelas de cavalaria de que Dom Quixote tanto gosta. Ele fala delas a todo tempo, por isso é bom ter alguma noção… Aqui mesmo no blog você pode achar informações sobre o cavaleiro prefirido dele, o Amadis de Gaula.
  2. Definitivamente, você não precisa ler o livro inteiro. Como eu disse, no começo a história gira em torno apenas do Dom Quixote, por isso é mais bacana. Clique aqui para ver quais são os melhores trechos para quem tem pressa.
  3. Leia os primeiros capítulos bastante cuidado, e logo você vai se acostumar com a linguagem arcaica. Aos poucos, a leitura vai fluir!

Bom, chega por hoje…

Vou providenciar o próximo livro! Até!

La vida del ingenioso autor D. Miguel de Cervantes – Parte 2

Vamos à segunda parte da Biografia de Cervantes. traduzida e adaptada de Cervantes y Don Quijote, de Daniel Eisenberg. Só lembrando que nós paramos na parte em que, depois de cinco anos, Cervantes finalmente se liberta do cativeiro na Argélia.

” [Depois de liberto, Cervantes] Levaria sempre consigo um desejo pela liberdade e uma profunda repugnância pela crueldade dos administradores muçulmanos. Outra vez na Espanha, em cujo solo não pisava há mais de dez anos, Cervantes buscava um emprego seguro e ao mesmo tempo se dedicava à composição literária.

Consta que conseguiu certa ressonância e lucro como autor de comédias: vendeu “vinte ou trinta” delas, que foram representadas nos teatros de Madri. Com poucas exceções, suas comédias ser perderam. Também Cervantes pôde vender a primeira parte da sua Galatea, publicada em 1585. (…)

Em 1584 nasce a única herdeira de Cervantes, a filha Isabel, a quem depois protegeria economicamente. Mas os dados sobre o relacionamento com a mãe de sua filha, Ana Franca de Rojas, nos faltam. No mesmo ano de 1584, Cervantes se casa com Catalina de Palacios, mulher muito mais jovem e economicamente confortável do que ele. Ainda que não saibamos diretamente, o matrimônio, sem filhos, parece ter sido infeliz, e Cervantes nunca se refere a sua esposa.

Então consegue dois empregos públicos: procurador da Armada e coletor de impostos atrasados no reino de Granada. Os dois eram trabalhos regularmente remunerados, ainda que sem prestígio e levando à necessidade de encontrar gente que não queria receber, por motivos de dinheiro, nem procuradores e coletores.

Mas estes cargos aparentemente ingratos tinham o que seria para Cervantes a vantagem principal: a oportunidade de viajar a Andaluzia. Deixando a mulher bem respaldada materialmente, a abandona e vai embora de casa. É então que Cervantes, como depois Dom Quixote, vai de povoado em povoado. Passa as noites em pensões pobres, mas tem algo que estima muito “a santa liberdade”. Suas diversões são as conversas e a leitura. Durante este período aconteceu o famoso aprisionamento na prisão real de Sevilha, aludido no prólogo e na primeira parte de Dom Quixote.

Facsímile da primeira edição de Dom Quixote

As atividades posteriores de Cervantes são menos conhecidas. Quando a corte se instala em Valladolid, no início do século XVII, Cervantes se estabelece ali também. Parece que teve algum emprego administrativo particular. Foi então que acabou e publicou a primeira parte de Dom Quixote. (…)

Com a primeira parte do Quixote nas ruas, Cervantes ganhou a primeira amostra da fama por que tanto almejava, mesmo que como autor “festivo”, ou seja, cômico. Na última década de sua vida, quando tinha mais de 58 anos, conseguiu apoio financeiro que o permitiu dedicar-se completamente à escrita. Acaba em poucos anos as Novelas exemplares, obra que o tira da pouco prestigiosa categoria de autor humorístico e lhe concede o aplauso geral. Então o qualificam, pela primeira vez, como “honra e lustre da nossa nação, admiração e inveja do estrangeiro”.

Começa a ter admiradores e seguidores, entre eles Tirso e Góngora. Nos últimos anos, doente e amargurado pela infrutífera tentativa de conseguir um cargo em Nápoles, escreve constantemente.

Com a colaboração do seu antigo rival Lope, aparece um ataque de mal gosto na forma da continuação do Quixote de Avellaneda [explicando: um tal Alonso Fernández de  Avellaneda escreveu uma falsa segunda parte de Dom Quixote; ao que parece, ele recebeu ajuda de Lope de la Veja, um autor de comédias que rivalizava com Cervantes], e ele se sente obrigado a acabar rapidamente a sua própria continuação, paralisada anos antes.

Esses livros antigos tinham todos a mesma capa...

Publica o “Viagem ao Parnaso”, um poema de crítica literária. Termina apressadamente aquela que considera sua obra-prima, “Os trabalhos de Persiles e Sigismunda”, quatro dias antes de morrer, e que publica, póstuma, a sua viúva. Tirando as comédias cujos manuscritos não possuía porque as tinha vendido, foram publicadas todas as suas obras acabadas. Com poucas exceções, os manuscritos das suas obras editadas e inacabadas se perderam.”

La vida del ingenioso autor D. Miguel de Cervantes – Parte 1

Alguns dias atrás, eu prometi fazer um post sobre a nada mole vida que o nosso amigo Miguel de Cervantes y Saavedra viveu. Tomo a liberdade de usar mais uma vez as palavras de Daniel Eisenberg, que entende muito mais de Cervantes do que eu!

Quem foi Cervantes?

¿Pero qué pasó con su brazo, Don Miguel?

“Há autores cujas vidas são tão anódinas que ninguém se interessaria por elas, mas somente por seus escritos. O que escreveram e o que viveram seguem rumos distintos. É, por exemplo, o caso de Calderón [e eu acrescentaria também como exemplo o Lewis Carroll, autor de Alice no País das Maravilhas, que apesar de ter sido um sujeito quadrado e certinho, produzia as maiores maluquices quando escrevia!].

Por outro lado, há autores cujas vidas nos brindam com testemunhos apaixonantes. A de Cervantes foi interessantíssima e muito relacionada com as suas obras. Ele mesmo sem dúvida a considerava novelesca, muito mais apaixonada e intensa do que as fingidas histórias dos livros de cavalarias.

(…)

Biografia. Cervantes nasceu em 1547 na jovem cidade universitária de Alcalá de Henares, cidade castelhana mais intelectual do século XVI. Seus pais, pela suas profissões e pela falta de informações sobre sua mãe, devem ter feito parte do grupo chamado, sem caridade, de “cristãos novos” (não há termo para se referir a este grupo que não seja depreciativo). Esta gente descendia de judeus espanhóis, um grupo culto e trabalhador, forçosa ou sinceramente convertido ao catolicismo durante os séculos XIV e XV (…).

O primeiro dado para conhecer diretamente a personalidade de Miguel é de 1569. Numa coleção de elegias reunidas por Juan López de Hoyos, diretor do “Estudio de Madrid”, Miguel aparece como autor de quatro poemas. Mais importante, descobrimos que Hoyos o qualifica como “caro e amado discípulo”. É de se supor, portanto, que foi um estudante que se destacava, o preferido do professor. (…)

Depois descobrimos que Cervantes se envolveu numa briga cujos detalhes não sabemos. Serviu na Itália ao Cardeal Acquaviva [em alguns lugares eu li que foi para a Itália justamente para fugir das encrencas em que se meteu]. Entrou na marinha, e segundo ele mesmo contou, participou da batalha de Lepanto, uma grande vitória dos galeões cristãos contra os turcos. Numa esboscada perdeu o uso da mão esquerda. Cervantes era, desde então, um deficiente. Sua mão destruída era muito visível e sem dúvida objeto de constantes comentários e explicações.

Só mais uma foto, seu Cervantes!

Durante a viagem de volta à Espanha, Cervantes foi aprisionada por piratas argelinos. Então começam cinco anos de cativeiro na Argélia, uma experiência de lhe marcaria até o âmago e que constitui, na opinião de Alonso Zamora Vicente e Juan Goytisolo, o eixo da sua vida.

Ao invés de ser vendido como escravo, destino dos prisioneiros pobres, foi retido a espera de um resgate elevado e impossível de reunir para a sua família. (…) Cervantes organizou várias tentativas de fuga, todas fracassadas. Incrivelmente, não recebeu nenhum castigo, e ficou amigo dos seqüestradores. Cinco anos depois pôde voltar à Espanha, graças aos esforços da família e de um frade, Juan Gil. Entre suas atividades no cativeiro estava a produção literária.”

(Traduzido e adaptado do capítulo Quien fue Cervantes, da obra Cervantes y Don Quijote – Daniel Eisenberg)

Continua amanhã!

Como ler Dom Quixote

Estou numa parte esquisita do livro Dom Quixote, lá pela página 450. É que a história simplesmente deixou de falar de Dom Quixote! Os personagens estão lendo um conto, que ocupa umas 50 páginas. Trata-se da história de um homem bem casado que resolve testar a fidelidade da esposa pedindo para o melhor amigo seduzi-la. Até o ponto que eu estou, não tem nada a ver com o Cavaleiro da Triste Figura. Talvez nessa altura da história o Cervantes tenho enjoado de falar da loucura de Dom Quixote e tenha resolvido falar de outros temas, como o adultério…

O conto até que é interessante, mas puxa vida, para quem não tem muita paciência vai parecer uma perda de tempo! Não é à toa que o Daniel Eisenberg, professor de Espanhol da Universidade da Flórida e autor de vários livros e artigos sobre a obra de Cervantes, recomendou que, na primeira vez, não é ideal ler o livro inteiro, só as partes principais.

Confiram as suas próprias palavras, livro Cervantes y Don Quijote:

Dom Quixote lendo - Honoré Daumier

Dom Quixote é um livro escrito lentamente, com pluma e tinteiro, e suas palavras foram cuidadosamente escolhidas e meditadas. Recomendo uma leitura também lenta, deixando tempo para saborear e refletir sobre o que se lê. Se você puder, leia, ou faça alguém ler para você, em voz alta. 

Tenho que ler o livro inteiro?

Certamente que não, aliás não recomendo num primeiro contato. Você pode ler trechos, capítulos soltos, capítulos seguidos, episódios, ou toda a obra de acordo com o seu critério. Você pode pegá-lo e largá-lo, ou pular o que você não gostar. Você está em casa, onde você é o senhor ou senhora, como disse o próprio Cervantes no seu prólogo. O livro é seu, e não você dele.

Dom Quixote e Sancho Pança descansando debaixo de uma árvore - Honoré Daumier

 Trechos recomendados

Os episódios que recomendo para quem lê Dom Quixote pela primeira vez são: desde a aparição de Sancho, na parte I, capítulo 7, até a entrada da dupla na Serra Morena, no capítulo 23. Na segunda parte, desde o início até o encontro com os duques, no capítulo 30. Se houver mais tempo, pode-se acrescentar, na primeira parte, a primeira viagem de Dom Quixote (capítulos 1-5). Na segunda parte, o governo de Sancho (capítulos 45, 47, 49-51, 53). E se o tempo é realmente limitado, para uma introdução brevíssima, o encontro com Maritornes na estalagem (parte I, capítulo 16) e a cova de Montesinos (parte II, capítulo 23).”

A Espanha está em alta!

Acho que estou deslocada. Fico aqui falando que o Dom Quixote é sensacional, que é a melhor contribuição da Espanha para a humanidade… mas acho que no dia de hoje meio mundo vai discordar de mim: a melhor coisa que a Espanha já fez é o Barcelona!

A transmissão da TV acabou de terminar, com a imagem dos jogadores erguendo aquela taça – que por sinal, ficou muito charmosa com as fitas azul e vermelhas amarradas… imagino, na minha ignorância de cultura futebolística, que isso seja uma tradição da  Champions League.

Então, como o clima pede, vamos falar hoje da Espanha, o país que pode se orgulhar de ser a pátria de duas instituições diferentes, mas igualmente imbatíveis – o F. C. Barcelona e o Dom Quixote de La Mancha.

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A Espanha do Quixote ou entre o Renascimento e o Barroco

A história de Dom Quixote se desenrola lá pelo ano 1600, numa região da Espanha chamada Castilha-La Mancha (olha que bonitinho o mapa). Mas o que isso quer dizer?

Bom, uma coisa é certa: a segunda parte do século XVI e a primeira do XVII são muito quentes na história da Europa.

Em 1580, na Espanha, o rei Felipe II consegue incorporar a coroa do reino de Portugal. O monarca espanhol consegue que a antes poderosa corte lusitana o reconheça como rei, o que significa o máximo de prestígio para a Espanha e o máximo de humilhação para os portugueses.

Rei Felipe II, que governou a Espanha durante quase toda a vida de Cervantes

Enquanto isso, na vizinha França, católicos e protestantes se matavam em batalhas sangrentas, numa rivalidade que chegava até à corte (aliás, sobre essa época existe outro livro clássico, Rainha Margot, do Alexandre Dumas. Qualquer dia eu leio aqui).

Já na Inglaterra, sob o comando da rainha Elizabeth, o clima era de recuperar o tempo perdido, porque a melhor parte da América já pertencia à Espanha (até mesmo o Brasil, porque lembrem-se: Portugal estava dominado). Mas não era fácil conseguir espaço nos sete mares com a “Invencível Armada” de Felipe II e piratas sanguinários de todas as nacionalidades à solta.

Resumindo: a Espanha estava podendo, era o Tio Sam do século XVII. Era também um centro fervilhante de produção cultural, que se inspirava nas contradições de uma sociedade que abandonava de vez o servilismo e fincava raízes no capitalismo; nas tensões que surgiam entre uma nobreza que empobrecia e um rei todo-poderoso; no abismo que separava uma burguesia cada vez mais rica e um povo que morria de fome (lembram do Lazarilho?).

Foi nessa época que Cervantes viveu, e aliás teve uma vida do cão (tema para posts a seguir). Numa sociedade tão complexa como esta, nada parecia mais inadequado, e até ridículo, do que o código de honra e o heroísmo moral representados nas novelas de cavalaria, o gênero literário mais popular na Espanha até então. Surgiam obras novas, contestadoras, que desconstruíam a pureza moral, acentuando a crueza da realidade.

Neste blog, já falamos sobre duas dessas obras: A Celestina e Lazarilho de Tormes.

O próprio Cervantes, no prólogo de Dom Quixote, esclarece que o seu propósito é criticar os livros de cavalarias, satirizá-los. Nas suas próprias palavras, o objetivo dele é “poner en aborrecimiento de los hombres las fingidas e disparatadas historias de los libros de caballerías”.

Este aspecto de Dom Quixote, o ridicularizador, às vezes é esquecido pelos leitores de hoje em dia, que se acostumaram a pensar em D. Quixote como um livro difícil, profundo e trágico.

Mas eu posso dizer, pela minha própria experiência, que deixar de lado o “peso” que se atribui ao D. Quixote e lembrar que obra foi escrita para fazer humor torna a leitura muito mais fácil e prazerosa. E, com certeza, mais parecida com o jeito que os espanhóis devem ter lido no século XVII.

O chapéu esquisito do D. Quixote

Olha que legal, eu descobri porque o Dom Quixote sempre é representado com este capacete estranho, que tem uma espécie de “mordida” na frente:

Esse chapéu é esquisito porque, na verdade, ele é uma bacia de barbeiro! Pois é, os homens encaixavam a cabeça na reentrância para aparar a barba. É assim que se fazia na falta de pia.

Pois bem, dom Quixote viu um sujeito andando na estrada com essa bacia na cabeça, porque ele era um comerciante carregado de mercadorias, que não tinha outro lugar para colocar a dita cuja.

Ao ver a bacia brilhando à distância com o sol do meio-dia, dom Quixote pensou que era o elmo encantado de Mambrino, uma espécie de Excalibur (lembram dela?) dos elmos. Não teve dúvidas: botou o mascate para correr com pancadas da sua lança e tomou para si a bacia, que passou a usar na cabeça todo orgulhoso.

Bom, e por hoje, that’s all folks. Estou com um sooooono!

Fala aí, seu Quixote: em que mundo você vive?

O professor Welington Andrade, doutor em literatura e professor de redação da Faculdade Cásper Líbero, sempre manda seus alunos lerem Dom Quixote em determinado momento do curso.

Recentemente, outro professor da Cásper Líbero, o doutor em ciências sociais Luis Mauro Sá Martino, assinou a reportagem de capa da revista Filosofia intitulada “Em que mundo você vive?”.

E o que uma coisa tem a ver com a outra?

Bom, além do fato de os dois professores serem muito competentes e queridos pelos alunos (ói eu aí rasgando seda =D), tem o fato de que o artigo do Luis Mauro é muito bacana para refletir sobre o “universo paralelo” que o Dom Quixote criou para viver, por isso o professor Welington recomendou a leitura.

E o que é o melhor de tudo, o texto vem numa linguagem super acessível, ótima para quem sempre quis conhecer filosofia mas nunca teve coragem de começar.

Vou colocar o texto aqui para vocês verem. Afinal das contas, quem nunca deu uma de Dom Quixote e imaginou um mundo próprio para morar?

Em que mundo você vive?

Fala-se em “realidade” como algo único e compartilhado por todos, mas uma das principais questões da Filosofia é se existe uma realidade objetiva ou se ela é modificada pelos sentidos. A visão de realidade universal pode levar a problemas éticos na relação com o outro

LUIS MAURO MARTINO

Outro dia, em uma padaria perto de casa, havia fila no balcão de frios. Pedi 300 gramas de alguma coisa. O balconista fatiou um pouco mais, 315 gramas. “Pode ser?”, perguntou. Concordei e, enquanto ele fazia o embrulho, um senhor de raros cabelos brancos logo atrás na fila disse, em tom de segredo: “Ele sempre faz isso, coloca a mais”. “Foram só 15 gramas”, respondi. “É, mas 15 aqui, 15 ali, rouba de todo mundo. É o dono que manda, por isso está rico!”. “Não deve ser de propósito”. Ele respondeu, espantado: “Você não quer ver as coisas como elas são”. E emendou: “Em que mundo você vive?”.

Ele talvez não saiba, mas sua pergunta vai muito além das cogitações monetárias daquele momento. A pergunta “em que mundo você vive?” é feita quando alguém não tem a mínima noção de um assunto que todos conhecem. O tom geralmente é de reprimenda: não saber o que todo mundo sabe significa, na melhor das hipóteses, distração; na pior, desinteresse. Nos dois casos, o objetivo é fazer a pessoa ter consciência de certa realidade.

Estamos acostumados, no cotidiano, a falar da “realidade” como se estivéssemos de acordo a respeito do que é isso e como se ela fosse uma só. No entanto, há vários elementos que a formam, várias linhas compondo o tecido da realidade – e não deixa de ser uma coincidência produtiva que “tecido” tenha a mesma raiz de “texto”. Cada indivíduo, nesse emaranhado, transita entre várias dessas linhas.

A noção é de que existe uma realidade comum a todas as pessoas. Essa realidade pode ser percebida igualmente por todos e independe de cada uma. Se alguém, por acaso, não sabe identificar essa realidade, se não sabe o que está acontecendo nela, é porque vive em outra dimensão, em outro mundo.

Isso leva a outro pressuposto, uma aparente contradição: é possível para alguém viver em seu próprio mundo, distante do que seria o mundo normal. A “realidade” para essa pessoa diverge, em graus variados, das outras – afinal, se é preciso chamar a atenção da pessoa para os fatos desta dimensão da realidade, é porque ela está em outra.

A ficção é pródiga em lidar com a noção de “realidades múltiplas”, mas geralmente partindo do pressuposto de que existem várias ordens ou dimensões de uma realidade concreta. A noção, largamente explorada, de “universos paralelos” ou mesmo de viagens, trabalha com a possibilidade, vislumbrada em algumas hipóteses e especulações científicas, de que nosso universo não é o único e a “realidade” é fragmentada. Mas não é preciso esperar pela ficção para se pensar no assunto.

O filósofo norte-americano William James, em um texto chamado As múltiplas realidades, escrito no final do século XIX e publicado em Princípios de Psicologia, chamou a atenção para esses fenômenos: vivemos em múltiplas realidades, mas quase não nos damos conta disso e, na maior parte dos casos, essa pluralidade é comprimida como se fosse uma entidade singular: a realidade.

Com isso, James voltava a uma das principais questões da Filosofia: existe uma realidade objetiva, isto é, independente do sujeito que a observa, ou toda realidade está ligada à pessoa que a observa – no caso, eu? Existe realidade além da primeira pessoa? Posso ter acesso à realidade tal como ela é ou estou condenado a sempre ter a “verdadeira” realidade modificada pelos sentidos?

Gostou? Continue a leitura!

Dom Quixote: as gravuras de Gustave Doré

Gustave Doré foi um ilustre ilustrador (hehe) francês do século XIX. Criou gravuras para mais de 200 livros, como a Bíblia, a Divina Comédia, contos de fadas de Perrault, entre muitos outros. Ao Dom Quixote ele dedicou, pasmem, 375 ilustrações (reunidas em algumas coletânias, como esta).

Das que eu vi, eu adorei estas duas, que mostram o universo imaginário da cavalaria em que o Quixote mergulhou e nunca mais saiu:

Para ver mais, clique aqui!

Relatório da leitura: estou mais ou menos na metade do primeiro volume, na parte que D. Quixote papeia com um sujeito ainda mais doido que topou com ele no meio de um bosque.

Saldo até agora: D. Quixote já perdeu parte da orelha e vários dentes; foi surrado, chutado, apedrejado e golpeado com uma bacia de ferro que ele usava como elmo. Sancho também já apanhou, foi jogado para cima, vomitou as tripas depois de beber a “poção” do amo, teve a bolsa roubada e o jumento também.

Eu me pergunto como é que eles vão aguentar vivos até o fim…