O melhor até agora

Aconteceu! Foram sete meses de trabalho duro e 16 livros das mais variadas grossuras, até eu concluir por que foi uma grande ideia criar este blog. Em três palavras: Incidente em Antares.

Não me lembro de outra leitura que tenha sido tão agradável e, ao mesmo tempo, implacável. Um raio X perfeito do nosso país, onde a cordialidade anda de mãos dadas com a cafajestagem, interferindo no destino de todos nós.

E quanta coragem deve ter sido necessária (ou talvez, amargura) para o Érico Verissimo publicar um livro desses em 1971, na pior fase da ditadura militar – os chamados “anos de chumbo”.

Não vou falar mais nada. Nada do que eu diga vai reproduzir a maestria dessa obra. Vou ficar aqui na minha, bem quietinha, saboreando a sensação de terminar de ler um livro, simplesmente, maravilhoso.

Adeus, defuntos no coreto da praça

“Desde que, adulto, comecei a escrever romances, tem-me animado até hoje a idéia de que o menos que o escritor pode fazer, numa época de atrocidades e injustiças como a nossa, é acender a sua lâmpada, fazer luz sobre a realidadede seu mundo, evitando que sobre ele caia a escuridão, propícia aos ladrões, aos assassinos e aos tiranos. Sim, segurar a lâmpada, a despeito da náusea e do horror. Se não tivermos uma lâmpada elétrica, acendamos o nosso toco de vela ou, em último caso, risquemos fósforos repetidamente, como um sinal de que não desertamos nosso posto.”

 Erico Veríssimo, “Solo de clarineta: memórias” – v. 1, Página 45

E como é que o governo militar permitiu esse livro?

Nunca vi tanta franqueza para denunciar a crueldade e ignorância dos regimes totalitários. E ainda sim, o livro Incidente em Antares foi publicado. Como pode?

O editor de Érico Verissimo na época, José Otávio Bertaso, é quem explica:

“Recebemos os originais e imediatamente os passamos à tipografia. O livro começou a ser composto antes mesmo que fosse editorado. Lá pela tantas, peguei os paquês e comecei a ler. Fiquei meio impressionado com algumas coisas que ali estavam. Cheguei à conclusão que se nós publicássemos o livro, ele poderia ser objeto de apreensão pela Censura Prévia que existia então. Bolamos um cartaz em negro com os dizeres: NUM PAÍS TOTALITÁRIO ESTE LIVRO SERIA PROIBIDO, o fac-símile da capa, e, embaixo, a frase: ‘à venda nas livrarias’. O cartaz estava sobre a mesa quando a pedagoga e psicóloga Juracy C. Marques, que à época estava publicando um livro conosco, viu a arte-final e nos alertou de que era muito agressivo e poderia nos causar problemas”.

Capa da 1ª edição de "Incidente em Antares", de 1971: 53 reimpressões

E continua Maria da Glória Bordini, professora da PUC/RS cujo artigo eu encontrei estas informações:

Seja como for, cegueira do regime militar, ou clarividência quanto à repercussão que um mandado de apreensão determinaria no cenário da cultura brasileira e nos meios literários internacionais em que Erico era conhecido, o recurso de marketing editorial da obra obteve uma resposta muito positiva por parte dos leitores brasileiros. Bertaso informa, sobre a circulação da obra, que “o total de exemplares, em edições sucessivas de 5.000 exemplares, atingiu 30.000 só naquele ano de 1971. O cartaz foi impresso e distribuído por todo o Brasil. O livro era acompanhado de uma cinta vermelha com letras negras e a mesma frase do cartaz”.

Obs: estes são trechos do artigo Incidente em Antares: a circulação da literatura em tempos difíceis, publicado revista USP número 68, de fevereiro de 2006.

Isso é que é realismo fantástico!

Sabem o que há de mais estranho em “Incidente em Antares”? É que o livro combina uma história absolutamente surreal – sete mortos que voltam para exigir seus próprios sepultamentos! – com uma série de episódios verdadeiros, aliás importantíssimos, da nossa história.

Vejam alguns, ilustrados por capas famosas do mitológico jornal varguista Última Hora, do jornalista Samuel Wainer:

Quando, cerca das oito e meia da manhã, tornou a soar a charanga do Repórter Esso, Tibério teve um sobressalto e correu para junto do rádio, com um mau pressentimento a apertar-lhe o peito, difïcultando-lhe a respiração. De novo a voz do locutor:

Rio. Urgente. O Presidente Getúlio Vargas acaba de suicidar-se com um tiro no coração, às oito horas e vinte e cinco minutos, em seus aposentos particulares do Palácio do Catete.

Tibério ficou estonteado. Não conseguiu entender as palavras que a seguir o locutor pronunciou. Deu uma volta sobre si mesmo, deixando o cigarro cair. Teria ouvido direito? O Getúlio tinha metido uma bala no coração… Santo Deus! Era o fim do mundo… Sentou-se, afrontado, esforçando-se por escutar o repórter, que continuava a falar: … foi encontrado um bilhete do próprio punho do Presidente: “À sanha de meus inimigos deixo o legado da minha morte. Levo o pesar de não ter podido fazer pelos humildes tudo aquilo que desejava”.

Lentas lágrimas escorriam pelo rosto do velho Tibério Vacariano. Saiu a vaguear pela casa e acabou entrando outra vez no seu quarto. A mulher agora estava fechada no quarto de banho, em cuja porta ele bateu. “Que é?” – perguntou ela. “Lanja, o Getúlio se suicidou.” Um grito: “Quê?” E ele: “O Repórter Esso acaba de noticiar que o Dr. Getúlio meteu uma bala de revólver no coração. Está morto”. Curto silêncio. Depois se ouviu um pranto convulsivo vindo de dentro do quarto de banho. Tibério encaminhou-se para a cozinha.

(Página 96)

No dia 25 de agosto de 1961, exatamente sete anos e um dia depois do suicídio de Getúlio Vargas, chegou a Antares a notícia de que Jânio Quadros acabava de apresentar ao Congresso Nacional a sua renúncia ao cargo de Presidente da República. D. Briolanja Vacariano, com palpitações de coração, fez o que nunca jamais fizera em toda a sua vida de esposa exemplar: acordou o marido da sesta vinte minutos antes da hora marcada e deu-lhe a notícia. Sentado na cama, estremunhado, olhos piscos, cara aparvalhada, Tibério pediu a repetição da estória. Ficou depois olhando fixamente para os dedos dos pés e de súbito ergueu-se soltando um grito: “Não! Não pode ser! É boato! Não pode ser!” E rompeu a andar estonteado pelo quarto, no seu pijama de pelúcia azul-celeste. “Não é possível! É o fim do mundo! O homem está doido varrido!”

(Página 126)

Tibério Vacariano estava perturbado. “Agora temos de engolir o Jango Goulart como Presidente” – pensava. – ‘É o fim da picada! É o fim da picada!” E repetindo esta frase ele atravessou a praça em diagonal e entrou na sede do diretório do PSD, onde só encontrou caras alarmadas e interrogativas. Um de seus correligionários disse: “Segundo a Constituição o Jango tem de assumir”. “A Constituição que vá pro diabo! Não podemos deixar o herdeiro do Getúlio tomar de novo o poder!” Alguém falou em “legalidade” e Tibério, apalpando o revólver na cintura, disse por entre dentes: “A legalidade está aqui”.

(Página 127)

Homenagem de Carlos Drummond de Andrade a Erico Verissimo

Escrita quando ele morreu, em 1975 – quatro anos depois de publicar seu último livro, “Incidente em Antares”

A falta de Erico Verissimo 

Falta alguma coisa no Brasil
depois da noite de sexta-feira.
Falta aquele homem no escritório
a tirar da máquina elétrica
o destino dos seres,
a explicação antiga da terra.

Falta uma tristeza de menino bom
caminhando entre adultos
na esperança da justiça
que tarda – como tarda!
a clarear o mundo.

Falta um boné, aquele jeito manso,
aquela ternura contida, óleo
a derramar-se lentamente.
Falta o casal passeando no trigal.

Falta um solo de clarineta.

Hahahaha! Essa cena é sensacional!

Tá bom, eu sei que eu tinha garantido que este blog não era spoiler, mas… essa cena é muito boa, tenho que colocar aqui!

Mas eu juro que não revela nada demais, fiquem tranquilos. É só mais uma das cenas hilárias que esse livro de mais de 500 páginas contém.

O que acontece é o seguinte: depois de levantar da sua tumba (como todos sabem, o “incidente” de Antares consiste no ressuscitamento de sete mortos que não foram sepultados), o advogado Cícero Branco resolve voltar a sua própria casa. Ao chegar lá, descobre que sua mulher já está muito à vontade com a viuvez…

Paulo Betti como o advogado Cícero Branco quando vivo...

“O Dr. Cícero Branco encontra-se agora dentro de sua própria residência, cujas janelas estão ainda fechadas. Silêncio e penumbra. No pequeno vestíbulo da entrada, põe-se diante do espelho oval do cabide, mas o vidro não lhe reflete a imagem. Mesmo assim ele ajeita a gravata e limpa com as pontas dos dedos a poeira de suas lapelas de seda.

O relógio da sala de jantar começa a bater lentamente a hora. Depois da oitava badalada, de novo a quietude. O advogado sai a caminhar ao longo do corredor que leva ao seu escritório. Pára diante do quarto conjugal, fica um instante como à escuta, depois, com um cuidado de gatuno, torce a maçaneta da porta e vai empurrando esta devagarinho até abrir um vão pelo qual se insinua na peça. Sempre pisando de leve, encaminha-se para a janela que dá para a rua, e abre-lhe as venezianas, deixando entrar o sol. Efigênia Branco, sua mulher, está na cama com um homem, ambos completamente nus e descobertos. Deitada sobre o lado esquerdo, o corpo meio arqueado, ela forma com as coxas, o ventre e os seios uma espécie de recôncavo no qual se aninha, numa posição quase fetal, um jovem que aparenta quando muito vinte anos, e que ela enlaça com os braços. As pálpebras da viúva de Cícero palpitam à repentina intensidade da luz, e ao cabo de alguns segundos se abrem. Efigênia vê aquele vulto negro contra a janela iluminada, solta um gritinho e põe-se de joelhos na cama, os olhos piscos, o susto no rosto, os seios murchos pendentes como duas jacas brancas.

– Bom dia, Efigênia – diz Cícero com irônica brandura. – Lembra-se de mim? O Cici…

Ela está como que siderada. O rapaz também desperta, e dando por aquela presença estranha no quarto, salta da cama, alarmado, e cola-se à parede, numa atitude defensiva. Só então Efigênia reconhece o marido. “Cícero! Meu Deus… mas você morreu!” – e põe-se a gritar e a rolar sobre o leito como uma possessa, a puxar os cabelos e ao mesmo tempo a rir e soluçar, ficando nas posições mais grotescas até que, exausta, deixa-se cair em decùbito dorsal, os peitos arfando, as mãos crispadas sobre o lençol, o olhar fixo no teto, enquanto de sua boca entreaberta se escapa um estertor líquido.

... e depois de morto...

Cícero volta-se para o rapaz que, pálido, agora treme da cabeça aos pés.

– Apresento-me. Dr. Cícero Branco. Corno póstumo. Não, minto. Eu já era enganado por minha mulher, quando vivo. Existe nesta cidade uma apreciável cadeia de cartas anônimas que me mantinha informado das atividades adulterinas dessa distinta dama, com detalhes de lugar, hora e nome do macho. E você? Acho que não o conheço… ou conheço? Pare de tremer, menino! Não lhe vou fazer nenhum mal físico ou moral. Se o meu mau cheiro o incomoda, molhe um lenço na água-de-colônia que está ali em cima do toucador e tape o nariz com ele.

Efigênia continua estendida na cama. Cícero estuda o rapaz com um cuidado de artista plástico.

– Louro, hem? Quase imberbe. Musculatura… pas-sável. Um Apoio de peso-galo. Estudante, presumo. Pois é. Minha mulher gosta de meninos. Tem a sua grande safra anual durante as férias de verão, quando os estudantes de Antares voltam de Porto Alegre e outros centros. – Olha para os órgãos genitais do rapaz. – Bom, para ser franco, a natureza não foi lá muito generosa com você. O David de Miguel Ângelo sofre da mesma exiguidade viril. Mas a sua juventude, a sua cara de anjo devem garantir o seu sucesso com certas mulheres que já entraram na menopausa.

... surpreendendo a mulher com outro na cama.

Aproxima-se da cama, inclina-se um pouco sobre a viúva, fica um instante a examiná-la e depois diz:

– Perdeu os sentidos. Quando eu sair, Romeu, trate de reviver esta sua Julieta faisandée. Há um frasco de sais de amoníaco no armarinho do quarto de banho.

O rapaz cai de joelhos e cobre o rosto com as mãos.

– Que é isso, homem? – exclama Cícero. – Controle-se. Não tenho mais direitos nem legais nem morais sobre essa senhora. Ela está viúva. Pode dormir com quem quiser. Ah! A propósito, como foi o ato ou os atos? Satisfatórios? Conseguiram o orgasmo simultâneo, que sempre foi o sonho da Efigênia? Desgraçadamente nunca lhe pude proporcionar esse gozo em comunhão. Ejaculação precoce, você compreende… O velho Freud explica essas coisas no seu jargão. E por falar em Freud, você sabe que a minha viúva tem idade para ser sua mãe? Pois tem. Você cometeu uma espécie de incesto branco… sem trocadilho, longe de mim! Mas deve ter sido algo de sensacional possuir a viúva dum sujeito cujo corpo ainda não foi sepultado, hem? E no próprio tálamo conjugal! Quase um ato de necrofilia…

O moço está agora completamente estendido no chão, o corpo reluzente de suor.

– Levante-se, menino. Eu me retiro. Vou tratar do meu sepultamento definitivo. Reviva a sua fêmea, convença-a, se puder, de que tudo foi um pesadelo… Infelizmente a minha podridão vai ficar por algum tempo neste quarto. .. Mas façam o amor assim mesmo. Será très exotique, très Marquis de Sade. Você deve saber um pouco de francês… ou não sabe?

Sempre na ponta dos pés Cícero Branco deixa o quarto e dirige-se para o seu escritório, abre-lhe ambas as janelas, senta-se à sua mesa de trabalho, apanha uma caneta-tintei-ro e começa a escrever numa folha de papel em branco. O silêncio na casa continua.”

(Ah, aproveito para explicar a falta de posts ontem: assim como o doutor Cícero Branco, minha internet morreu… e diferentemente dele, ela só resolveu ressuscitar mais de 24 horas depois!)

Todo livro bom tem grandes personagens

Acusaram meu blog de spoiler, vejam só que injustiça!

Me falaram que eu entrego o final dos livros que leio. Mas isso não é verdade, minha gente: podem ficar sossegados, que eu não entrego o final das histórias, eu só coloco trechos que dão uma ideia de como é cada obra, do estilo de cada autor… são só degustações, não a refeição completa!

É o que vou fazer agora: colocar um passagem que conta a história de vida de um dos defuntos protagonistas do livro: o pianista Menandro Olinda, genial porém fracassado. É longa, mas compensa. Me emocionou bastante. Acho que vai emocionar vocês também:

“Se algum dia alguém escrever a história do Teatro São Pedro, de Porto Alegre, desde a sua inauguração até aos nossos dias, certamente verá na noite da estréia do pianista Menandro Olinda um dos seus episódios mais dramáticos. (…)

Filho único e serôdio dum casal da classe média. O pai vivia do arrendamento de um campo seu. A mãe, uma rígida professora pública. Ele manso e terno, desses tipos que vivem em surdina. Ela uma disciplinadora autoritária e quase uma fanática religiosa. Ambos apaixonados pelo filho.

Desde os seis anos Menandro revelou grande talento pianistico. Quando completou o oitavo aniversário, um professor de música local declarou-o excepcional e começou a dar-lhe lições de piano. Quando o aluno completou quatorze anos o mestre antarense aconselhou os Olindas a mandarem o filho estudar em Porto Alegre. O casal mudou-se para a capital do Estado e matriculou o rapaz no Conservatório de Música. Um dia o diretor do Conservatório aconselhou os Olindas a levarem o “prodígio” – então com dezoito anos – para aperfeiçoar-se com um grande mestre, em Buenos Aires. O pai de Menandro vendeu o seu campo para apurar o dinheiro de que necessitava para as despesas de viagem e a permanência no estrangeiro. E assim passaram os três cerca de cinco anos na capital da Argentina.

Finalmente, com vinte e três anos completos, Menandro preparou-se para o seu concerto de estréia no Teatro São Pedro de Porto Alegre. Seu forte eram os românticos. Seu preferido, Beethoven. Seu cavalo de batalha, a Appassionata. Durante um ano inteiro estudou exaustivamente o seu programa, fechado em casa, a mãe sentada numa cadeira perto do piano, como um cão de fila. Quando ele parava, cansado, ela insistia: “Outra vez! Vamos, Nandinho!”. O rapaz não tinha amigos. À noitinha costumava sair sozinho a caminhar pela praça e a conversar com seus fantasmas. No dia seguinte, às seis da manhã, a mãe o despertava, servia-lhe o café e dizia: “Para o piano!”. Muitos dos vizinhos costumavam despertar todas as manhãs ao som de estudos de Chopin ou mesmo dos belos acordes iniciais da Appassionata. O barbeiro Jesualdo, que tem bom ouvido, já sabia de cor – podia até assobiar – trechos do programa do virtuoso, composto de estudos, prelúdios e noturnos de Chopin, sonatas de Schubert e Schumann e da Appassionata. A um repòrter de A Verdade que então o entrevistou, Me-nandro Olinda confiou seus planos. Faria a sua estréia no São Pedro em setembro de 1935 – durante as comemorações do Centenário da Guerra dos Farrapos – numa homenagem ao velho teatro, à capital de seu Estado e à memória do Gen. Bento Gonçalves com o qual (sua mãe lhe assegurava) os Olindas tinham um remoto mas honroso parentesco. E depois, maestro? Bom, depois ele daria um concerto no Rio, outro em Montevidéu e outro em Buenos Aires. Começaria então a ser conhecido mundialmente. A sua grande meta eram os grandes centros da Europa: Paris, Roma, Viena, Londres, Amsterdam…

A imprensa de Porto Alegre começava já a escrever sobre o “novo gênio musical gaúcho”, o jovem Paderewsky (segundo um jornal) o novo Brailovsky (segundo outro). Um cronista de arte, a quem Menandro deu uma audição privada Appassionata, declarou que sua interpretação dessa Peça de Beethoven era tão perfeita quanto a de Backhaus.

Chegou a noite do concerto de estréia. O São Pedro completamente lotado, com cadeiras extras colocadas nos corredores da platéia. O Gen. Flores da Cunha e outros membros do seu governo no camarote oficial. O artista, envergando pela primeira vez uma casaca feita pelo melhor alfaiate da cidade, entra no palco, nervosíssimo, as mãos geladas e úmidas dum suor frio que também lhe goteja da testa, lhe escorre pelo rosto e ao longo da espinha. É recebido com fortes aplausos. Senta-se ao piano, ajeita o banco, enxuga as mãos com um lenço, espera que os aplausos cessem e os retardatários se acomodem nos seus lugares. Cerra os olhos por alguns segundos, e quando os abre avista a sua mãe sentada numa cadeira, nos bastidores, à sua frente, bem como nos tempos em que ele era adolescente e ela o obrigava a tocar escalas a tarde inteira, sob sua vigilância implacável.

Menandro sente de súbito a memória bloqueada, como se nunca em sua vida tivesse tocado o primeiro número daquele programa – um estudo de Chopin. Ele é agora um menino de treze anos, está fechado no seu quarto, ouve passos no corredor e estremece, corre para a porta a fim de certificar-se de que está realmente fechada à chave.

Começa a tocar, mas tão afobado, que não consegue interpretar o estudo com a pureza habitual. Quando dá o último acorde, os aplausos são fracos. Menandro olha de novo para a mãe. “As escalas, Nandinho! Depois podes ir brincar com as tuas bonecas. As escalas. Não! Dal capo… Isso!”

Interpreta Schumann um pouco melhor do que tocou o primeiro número. Os aplausos continuam frios. O coração de Menandro bate descompassado, um espasmo cerra-lhe a garganta. Que se estará passando com os seus dedos, com as suas mãos, com os seus pulsos? Chega ao fim da primeira parte do programa e se retira do palco, não com o. dignidade habitual, mas depressa, quase a correr, como quem foge. Seu médico vai procurá-lo no camarim, dá-lhe um calmante. Mas lá está a sua mãe, abrindo a porta do quarto do menino solitário: “Vamos, Nandinho. Está na hora da missa”. Cruzam a praça. O pai, que caminha encurvado e devagar, arrastando os pés, fica dois passos para trás. A mãe pergunta: “Ontem confessaste todos os teus pecados ao vigário?” “Confessei, mamãe.” “Todos mesmo? Ele sente um calorão nas orelhas e no pescoço, um formigueiro no corpo. “Quem toma comunhão sem estar limpo de pecados, meu filho, vai para o inferno.”

Menandro agora ali no camarim decide cancelar o resto do concerto. “Devolvam ao público o dinheiro dos ingressos! Façam o que entenderem, mas eu não vou tocar mais!” O empresário lhe replica que isso é impossível, que ele, Menandro, tem de continuar, que tudo vai sair bem… O pianista ergue-se, trêmulo, encaminha-se para o palco, onde é recebido com raros aplausos. Torna a sentar-se ao piano. Olha para os bastidores e lá está sua mãe, que lhe faz sinais com’a cabeça, tentando encorajá-lo.

Uma sonatina de Schubert, clara e alegre. Ele a executa passavelmente bem e isso lhe dá um pouco de coragem. Mas agora vem a Appassionata! Menandro volta a cabeça na direção da platéia e sente uma vertigem. Depois olha para as próprias mãos já pousadas sobre o teclado. Mas naquele dia ele tinha esquecido de fechar a porta, e sua mãe usava em casa pantufas de lã… A porta se abriu de repente. “Minha Nossa Senhora! O que é que estás fazendo, meu filho? Que horror! Que vergonha! Que pecado! Deus vai te castigar, fazer secar esses dedos, paralisar essas mãos!” E ele se revolvia na cama, a sua seiva a esguichar-lhe do corpo num estertor de prazer misturado com susto e vergonha.

A mãe desatou num choro convulsivo: “O meu filho! O meu filhinho que eu pensei que era inocente e puro! Ai que vergonha! Deus vai te castigar!” Fez meia volta e se foi batendo com a porta. E ele, Menandro, rompeu a chorar, pensou em suicidar-se, fugir de casa… Como ia ter coragem de encarar de novo a mãe… o pai?

O público espera, impaciente. Menandro ataca a Appassionata. Sente, porém, que suas mãos estão agora paralisadas, que seus dedos não obedecem ao seu cérebro. Ergue-se de súbito, derrubando a banqueta, e sai quase a correr do palco e no camarim põe-se a chorar, a soluçar e a dizer incoerências. Dois dias depois, a conselho do médico, os pais o internaram num sanatório para doenças mentais, onde ete permaneceu três anos. Durante esse tempo a sua mãe morreu. O pai continuou em Porto Alegre, visitava-o todas as semanas, conversavam sentados num banco do jardim do sanatório, falavam em flores, na casa de Antares, e Menandro jamais perguntava pela mãe, cujo falecimento ignorava.

Quando o médico lhe deu alta, ele voltou para Antares, em companhia do pai. Lá estava, na sua sala, o piano que ele não ousou abrir por muito tempo. Ninguém na cidade lhe falava no concerto nem no fato de ele ter passado todos aqueles anos num hospício.

Seu pai morreu em 1942. A casa ainda lhe pertencia, de sorte que Menandro a herdou. Começou a dar lições de piano e passou a viver disso e do aluguel do andar térreo de seu sobradinho. Tornou-se um dos tipos populares da cidade. Nunca, porém, esqueceu o fracasso de seu concerto de estréia. Continuou a estudar piano, preparando a sua volta.

É um homem de ordinário silencioso e retraído, mas pode dum momento para outro tornar-se loquaz e gregario: confia à primeira pessoa pue encontra o seu projeto de fazer ainda uma carreira de concertista, “retornar aos palcos do mundo”, honrar o nome de Antares e do Brasil. Alguns o escutam com paciência e o tratam até com bondade. A maioria, porém, foge dele. Muitos o ridicularizam. E, como nos velhos tempos, ainda hoje, à tardinha, o professor de piano faz a sua caminhada solitária pela praça, olha os passarinhos, contempla as flores, troca duas palavras com o fotógrafo ambulante, entra na igreja, ajoelha-se, reza, torna a sair e volta para casa.”

(grifos meus!)

A geografia política brasileira…

Estou adorando “Incidente em Antares”!

E uma das melhores coisas a respeito desse livro é o didatismo para explicar as nossas mazelas políticas…
Confiram um trechinho, estrelando o coronel Tibério Vacariano, manda-chuva da fictícia Antares, e o jornalista Lucas Faia, editor-chefe do jornal da cidade:

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“Certa manhã, após ler um editoria de A Verdade no qual Lucas Faia elogiava o presidente Kubitschek por estar procurando incutir na nação brasileira a ideia de que ela tinha ‘um encontro marcado com o Destino, e um grande papel a representar no palco da História’, Tibério Vacariano tirou-se dos seus cuidados e invadiu – o termo é exatamente este -, invadiu a redação do jornal local, embarafustou de chapéu na cabeça pelo escritório de seu diretor e, sem dizer-lhe ‘Bom-dia’ nem o habitual ‘Que tal?’, vociferou: ‘Você também já se venceu pro Juscelino? Quanto está recebendo dele? Qual encontro com o Destino qual nada! Estamos é com um encontro marcado com a inflação, a bancarrota, a miséria e a anarquia!’.

Lucas Faia levantou-se, mas sem perder o sorriso e os bons-modos:

– Sente-se, coronel. Vamos discutir o assunto tomando um cafezinho.

Acercou-se da porta que dava para a sala da redação e gritou:

– Ó Juca, manda fazer dois cafés bem bons. E depressa!

Tibério continuava de pé, com o número de A Verdade na mão, e dava-lhe repetidos tapas, como se quisesse castigar fisicamente o editorial.

– Nunca vi tanta besteira junta. É teu pior escrito nestes últimos vinte anos!

– Sente, por favor, coronel. Não vamos brigar. O senhor está em sua casa.

Tibério sentou-se, mas sem tirar o chapéu. Reacendeu o cigarro que tinha, morto, a um canto da boca e esse gesto de certo modo pareceu acalmá-lo um pouco.

– O senhor sabe, coronel, como eu acato suas opiniões… Como forte acionista de A Verdade, o meu ilustre amigo tem todo o direito de dizer o que está e o que não está certo na orientação do jornal. Então acha que o presidente Kubitschek está fazendo um mau governo?

– Mau? Péssimo. Perigosíssimo. O país não aguenta mais as loucuras desse homem. Onde se viu construir uma capital a todo vapor, remetendo o material por via aérea? Então você acredita mesmo que ele vai inaugurar essa tal cidade antes do fim do mandato?

Lucas Faia continuava aparentemente sereno.

– Coronel, eu acredito, mas posso estar errado. Agora, há alguém que nunca se engana. Só essa identidade poderá dizer a última palavra no caso.

– Quem é?

– A História.

– Não é pessoa das minhas relações…

– Coisas que hoje parecem ousadia, loucura, amanhã serão consideradas não só sensatas… como até (como direi?)… modestas, tímidas.

– Você está doido. Mande examinar essa cabeça o quanto antes.

Veio o café. Vacariano bebeu o seu em goles curtos e sôfregos, pôs a xícara na mesa e disse, menos exaltado:

– É que o que acontece quando um bando de eleitores analfabetos leva à Presidência da República um ex-médico urologista da Força Policial de Minas Gerais.

– Mais um cafezinho, coronel?

– Ó Lucas, não me amole mais com esse café, que por sinal estava requentado.

– O senhor está muito pessimista… – sorriu o jornalista. Tinha uma voz macia e vagamente anasalada, como num defluxo crônico.

Tibério lutava agora um pouco com a própria respiração. O suor escorria-lhe pelas faces.

– Lucas, você sabe que não sou pessimista. O que sou é um homem com as patas plantadas na terra. Não vou com fantasias. E há uma coisa que já ficou bem clara nessa história toda. Come esses seus negócios e empreendimentos do arco-da-velha o Juscelino está dando a seus amigos, afilhados e sócios a oportunidade de enriquecer ilicitamente.

Lucas pensou nas grandes, incontáveis patifarias que o homem que tinha na sua frente havia praticado na vida – a famosa ‘fábrica de seda’, operações de câmbio negro, o contrabando de pneumáticos de automóvel nos últimos anos da Grande Guerra – e continuou a sorrir um falso sorriso de mau ator. Não queria indispor-se como velho, mesmo que tivesse coragem para tanto. Sem ser o melhor dos amigos, Tibério Vacariano era o pior dos inimigos.”

(Incidente em Antares. Ed. Companhia de Bolso, p. 109-111)

Mas que raio de Incidente é esse?

Resolvi ler “Incidente em Antares” graças a um comentário do meu pai: “ah esse é muito bom. Até eu li!”.

Meu pai é uma das pessoas mais inteligentes que conheço, mas não é lá muito fanático por livros. Prefere os jornais, que ele compra religiosamente todos os dias. Eu até já perguntei por que ele não faz uma assinatura de uma vez, mas ele desconversou. Desconfio que seja porque ele adora passar todas as manhãs no jornaleiro, usando moedas separadas no dia anterior, que isso faça parte do seu ritual.

Minha mãe estava organizando os livros na estante – ela sim lê muito, na verdade compulsivamente, bem mais do que eu – e comentando cada título que reposicionava nas prateleiras. No meio de muitas obras que eu ainda pretendo ler, como Balzac, os autores russos, Victor Hugo, Hemingway entre muitos outros, surgiram os livros de um escritor gaúcho chamado Erico Verissimo.

Tudo que eu sabia dele é que ele é pai do Luis Fernando Verissimo, um cronista de primeiríssima linha cujos livros eu já li um monte (aliás, recomendo COM URGÊNCIA “Comédias da Vida Privada” e “As Mentiras que os Homens Contam”, dois insuperáveis clássicos do humor).

Ah, também já tinha lido, há muitos anos, o seu “Clarissa” – um romance meigo, mas que não não me marcou. Inconformada com tamanha ignorância, minha mãe me falou dos trabalhos dele que marcaram época, como os três livros que compõem a saga “O tempo e o vento”, “Música ao longe” e, por fim, “Incidente em Antares”.

Grupo Máschera em adaptação de "Incidente em Antares" para os palcos, em 2010

Neste seu último livro, publicado em 1971, Verissimo faz uma crítica bem-humorada à história do Brasil, passando pelo período imperial, a época das revoltas regenciais, a Guerra do Paraguai, a proclamação da República, a política do café-com-leite, o Varguismo, a era JK, e finalmente o golpe militar.

Não por acaso, muitas Universidade pedem a leitura dessa obra como exigência para os seus vestibulares. Porém, pelo que eu já li até agora, “Incidente em Antares” é muito mais do que um mero livro de História…

Isso porque Verissimo usou um gênero que você jamais vai ver num livro de cursinho pré-vestibular: o realismo fantástico.

Como o próprio nome indica, esse gênero literário mistura realidade com fantasia, o cotidiano com experiências sobrenaturais. Esteve muito na moda nos anos 60 e 70 aqui na América Latina, e muitos defendem que foi uma reação da literatura contra as ditaduras militares.

Por isso, no meio das informações historicamente precisas, Verissimo retrata um “incidente” insólito: a revolta dos defuntos da cidade de Antares contra o mundo dos vivos, que os deixaram sem sepultura

O gênero do realismo fantástico (ou “realismo mágico”) também foi explorado por autores muito conhecidos, como o colombiano Gabriel García Márquez, os argentinos Julio Cortázar e Jorge Luis Borges, a chilena Isabel Allende, entre outros – nomes que certamente serão incluídos neste blog!

O realismo fantásico "A Casa dos Espíritos", de Isabel Allende: um dos livros mais maravilhosos que já li