Acusaram meu blog de spoiler, vejam só que injustiça!
Me falaram que eu entrego o final dos livros que leio. Mas isso não é verdade, minha gente: podem ficar sossegados, que eu não entrego o final das histórias, eu só coloco trechos que dão uma ideia de como é cada obra, do estilo de cada autor… são só degustações, não a refeição completa!
É o que vou fazer agora: colocar um passagem que conta a história de vida de um dos defuntos protagonistas do livro: o pianista Menandro Olinda, genial porém fracassado. É longa, mas compensa. Me emocionou bastante. Acho que vai emocionar vocês também:
“Se algum dia alguém escrever a história do Teatro São Pedro, de Porto Alegre, desde a sua inauguração até aos nossos dias, certamente verá na noite da estréia do pianista Menandro Olinda um dos seus episódios mais dramáticos. (…)
Filho único e serôdio dum casal da classe média. O pai vivia do arrendamento de um campo seu. A mãe, uma rígida professora pública. Ele manso e terno, desses tipos que vivem em surdina. Ela uma disciplinadora autoritária e quase uma fanática religiosa. Ambos apaixonados pelo filho.
Desde os seis anos Menandro revelou grande talento pianistico. Quando completou o oitavo aniversário, um professor de música local declarou-o excepcional e começou a dar-lhe lições de piano. Quando o aluno completou quatorze anos o mestre antarense aconselhou os Olindas a mandarem o filho estudar em Porto Alegre. O casal mudou-se para a capital do Estado e matriculou o rapaz no Conservatório de Música. Um dia o diretor do Conservatório aconselhou os Olindas a levarem o “prodígio” – então com dezoito anos – para aperfeiçoar-se com um grande mestre, em Buenos Aires. O pai de Menandro vendeu o seu campo para apurar o dinheiro de que necessitava para as despesas de viagem e a permanência no estrangeiro. E assim passaram os três cerca de cinco anos na capital da Argentina.
Finalmente, com vinte e três anos completos, Menandro preparou-se para o seu concerto de estréia no Teatro São Pedro de Porto Alegre. Seu forte eram os românticos. Seu preferido, Beethoven. Seu cavalo de batalha, a Appassionata. Durante um ano inteiro estudou exaustivamente o seu programa, fechado em casa, a mãe sentada numa cadeira perto do piano, como um cão de fila. Quando ele parava, cansado, ela insistia: “Outra vez! Vamos, Nandinho!”. O rapaz não tinha amigos. À noitinha costumava sair sozinho a caminhar pela praça e a conversar com seus fantasmas. No dia seguinte, às seis da manhã, a mãe o despertava, servia-lhe o café e dizia: “Para o piano!”. Muitos dos vizinhos costumavam despertar todas as manhãs ao som de estudos de Chopin ou mesmo dos belos acordes iniciais da Appassionata. O barbeiro Jesualdo, que tem bom ouvido, já sabia de cor – podia até assobiar – trechos do programa do virtuoso, composto de estudos, prelúdios e noturnos de Chopin, sonatas de Schubert e Schumann e da Appassionata. A um repòrter de A Verdade que então o entrevistou, Me-nandro Olinda confiou seus planos. Faria a sua estréia no São Pedro em setembro de 1935 – durante as comemorações do Centenário da Guerra dos Farrapos – numa homenagem ao velho teatro, à capital de seu Estado e à memória do Gen. Bento Gonçalves com o qual (sua mãe lhe assegurava) os Olindas tinham um remoto mas honroso parentesco. E depois, maestro? Bom, depois ele daria um concerto no Rio, outro em Montevidéu e outro em Buenos Aires. Começaria então a ser conhecido mundialmente. A sua grande meta eram os grandes centros da Europa: Paris, Roma, Viena, Londres, Amsterdam…
A imprensa de Porto Alegre começava já a escrever sobre o “novo gênio musical gaúcho”, o jovem Paderewsky (segundo um jornal) o novo Brailovsky (segundo outro). Um cronista de arte, a quem Menandro deu uma audição privada Appassionata, declarou que sua interpretação dessa Peça de Beethoven era tão perfeita quanto a de Backhaus.
Chegou a noite do concerto de estréia. O São Pedro completamente lotado, com cadeiras extras colocadas nos corredores da platéia. O Gen. Flores da Cunha e outros membros do seu governo no camarote oficial. O artista, envergando pela primeira vez uma casaca feita pelo melhor alfaiate da cidade, entra no palco, nervosíssimo, as mãos geladas e úmidas dum suor frio que também lhe goteja da testa, lhe escorre pelo rosto e ao longo da espinha. É recebido com fortes aplausos. Senta-se ao piano, ajeita o banco, enxuga as mãos com um lenço, espera que os aplausos cessem e os retardatários se acomodem nos seus lugares. Cerra os olhos por alguns segundos, e quando os abre avista a sua mãe sentada numa cadeira, nos bastidores, à sua frente, bem como nos tempos em que ele era adolescente e ela o obrigava a tocar escalas a tarde inteira, sob sua vigilância implacável.
Menandro sente de súbito a memória bloqueada, como se nunca em sua vida tivesse tocado o primeiro número daquele programa – um estudo de Chopin. Ele é agora um menino de treze anos, está fechado no seu quarto, ouve passos no corredor e estremece, corre para a porta a fim de certificar-se de que está realmente fechada à chave.
Começa a tocar, mas tão afobado, que não consegue interpretar o estudo com a pureza habitual. Quando dá o último acorde, os aplausos são fracos. Menandro olha de novo para a mãe. “As escalas, Nandinho! Depois podes ir brincar com as tuas bonecas. As escalas. Não! Dal capo… Isso!”
Interpreta Schumann um pouco melhor do que tocou o primeiro número. Os aplausos continuam frios. O coração de Menandro bate descompassado, um espasmo cerra-lhe a garganta. Que se estará passando com os seus dedos, com as suas mãos, com os seus pulsos? Chega ao fim da primeira parte do programa e se retira do palco, não com o. dignidade habitual, mas depressa, quase a correr, como quem foge. Seu médico vai procurá-lo no camarim, dá-lhe um calmante. Mas lá está a sua mãe, abrindo a porta do quarto do menino solitário: “Vamos, Nandinho. Está na hora da missa”. Cruzam a praça. O pai, que caminha encurvado e devagar, arrastando os pés, fica dois passos para trás. A mãe pergunta: “Ontem confessaste todos os teus pecados ao vigário?” “Confessei, mamãe.” “Todos mesmo? Ele sente um calorão nas orelhas e no pescoço, um formigueiro no corpo. “Quem toma comunhão sem estar limpo de pecados, meu filho, vai para o inferno.”
Menandro agora ali no camarim decide cancelar o resto do concerto. “Devolvam ao público o dinheiro dos ingressos! Façam o que entenderem, mas eu não vou tocar mais!” O empresário lhe replica que isso é impossível, que ele, Menandro, tem de continuar, que tudo vai sair bem… O pianista ergue-se, trêmulo, encaminha-se para o palco, onde é recebido com raros aplausos. Torna a sentar-se ao piano. Olha para os bastidores e lá está sua mãe, que lhe faz sinais com’a cabeça, tentando encorajá-lo.
Uma sonatina de Schubert, clara e alegre. Ele a executa passavelmente bem e isso lhe dá um pouco de coragem. Mas agora vem a Appassionata! Menandro volta a cabeça na direção da platéia e sente uma vertigem. Depois olha para as próprias mãos já pousadas sobre o teclado. Mas naquele dia ele tinha esquecido de fechar a porta, e sua mãe usava em casa pantufas de lã… A porta se abriu de repente. “Minha Nossa Senhora! O que é que estás fazendo, meu filho? Que horror! Que vergonha! Que pecado! Deus vai te castigar, fazer secar esses dedos, paralisar essas mãos!” E ele se revolvia na cama, a sua seiva a esguichar-lhe do corpo num estertor de prazer misturado com susto e vergonha.
A mãe desatou num choro convulsivo: “O meu filho! O meu filhinho que eu pensei que era inocente e puro! Ai que vergonha! Deus vai te castigar!” Fez meia volta e se foi batendo com a porta. E ele, Menandro, rompeu a chorar, pensou em suicidar-se, fugir de casa… Como ia ter coragem de encarar de novo a mãe… o pai?
O público espera, impaciente. Menandro ataca a Appassionata. Sente, porém, que suas mãos estão agora paralisadas, que seus dedos não obedecem ao seu cérebro. Ergue-se de súbito, derrubando a banqueta, e sai quase a correr do palco e no camarim põe-se a chorar, a soluçar e a dizer incoerências. Dois dias depois, a conselho do médico, os pais o internaram num sanatório para doenças mentais, onde ete permaneceu três anos. Durante esse tempo a sua mãe morreu. O pai continuou em Porto Alegre, visitava-o todas as semanas, conversavam sentados num banco do jardim do sanatório, falavam em flores, na casa de Antares, e Menandro jamais perguntava pela mãe, cujo falecimento ignorava.
Quando o médico lhe deu alta, ele voltou para Antares, em companhia do pai. Lá estava, na sua sala, o piano que ele não ousou abrir por muito tempo. Ninguém na cidade lhe falava no concerto nem no fato de ele ter passado todos aqueles anos num hospício.
Seu pai morreu em 1942. A casa ainda lhe pertencia, de sorte que Menandro a herdou. Começou a dar lições de piano e passou a viver disso e do aluguel do andar térreo de seu sobradinho. Tornou-se um dos tipos populares da cidade. Nunca, porém, esqueceu o fracasso de seu concerto de estréia. Continuou a estudar piano, preparando a sua volta.
É um homem de ordinário silencioso e retraído, mas pode dum momento para outro tornar-se loquaz e gregario: confia à primeira pessoa pue encontra o seu projeto de fazer ainda uma carreira de concertista, “retornar aos palcos do mundo”, honrar o nome de Antares e do Brasil. Alguns o escutam com paciência e o tratam até com bondade. A maioria, porém, foge dele. Muitos o ridicularizam. E, como nos velhos tempos, ainda hoje, à tardinha, o professor de piano faz a sua caminhada solitária pela praça, olha os passarinhos, contempla as flores, troca duas palavras com o fotógrafo ambulante, entra na igreja, ajoelha-se, reza, torna a sair e volta para casa.”
(grifos meus!)