Novelas escritas, novelas filmadas…

… O que é literatura e o que não é?

No meu último post, eu afirmei que novelas como Salve Jorge, de Glória Perez, também podem ser consideradas arte literária – uma vez que este tipo de história é uma derivação de um gênero da literatura, o folhetim – do qual faz parte o último romance que li para o blog, Grandes Esperanças (de Charles Dickens).

Algumas pessoas me questionaram, e eu resolvi tirar a dúvida. Perguntei ao professor Welington Andrade, professor da Faculdade Cásper Líbero e doutor em Literatura, qual era a opinião dele sobre o assunto.

Taí a resposta dele.

welington andrade

 – A literatura é a arte que concebe mundos irreais a partir da mediação exercida, única e exclusivamente, pela presença da palavra literária. Já a telenovela é um gênero que vive basicamente de três mediações inter-relacionadas: a palavra, a encenação e os recursos de edição. A telenovela herdou do folhetim a estrutura seriada, em capítulos, e certa propensão ao melodrama – típica dos folhetins vinculados à estética romântica –,  mas isso não lhe confere estatuto de literatura. Podemos chamá-la de narrativa audiovisual  (cujas regras são muito semelhantes às das narrativas cinematográficas, por exemplo, que, diga-se de passagem, jamais são tratadas como literatura). Por isso, um bom epíteto para a telenovela seria “folhetim eletrônico”.

 

Grandes esperanças, novelas maiores ainda

No último capítulo da novela Salve Jorge, a maligna vilã Lívia dá cabo de mais uma personagem que descobre, graças a uma combinação de circunstâncias muito improváveis, que ela é uma sanguinária e impiedosa traficante de seres humanos. Pela segunda vez, a queima de arquivo é feita através da técnica de injetar um líquido letal na jugular da vítima, que dá adeus ao mundo com um cômico olhar de incredulidade.

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Técnicas insólitas de assassinato, somadas à ausência de testemunhas e câmeras de segurança (mesmo a cena se passando no elevador de um movimentado hotel), e coroadas com a incompetência da polícia em decifrar o crime que está mais óbvio do que a interpretação das atrizes – todos esses elementos pouco realísticos colaboram para que algumas pessoas tenham, digamos assim, uma certo preconceito contra as novelas, o formato narrativo mais popular do nosso país.

Mas a verdade é que este é um gênero literário (sim, literário) extremamente rico e provavelmente um dos importantes já inventados.

Grandes Esperanças, de Charles Dickens, é um exemplo de tataravô das novelas modernas construído com esmero e arrasadora habilidade narrativa.

Publicado originalmente entre 1860 e 1861 no periódico All the Year Round, o folhetim traz a história de Pip, um jovem de origem tão simplória quanto seu próprio nome, e que em determinado momento é agraciado por uma herança de um benfeitor misterioso.

alltheyearround

Narrado em primeira pessoa com muita ironia e bom humor, o folhetim é uma narrativa longa e deliciosa, exatamente como uma boa novela que, quando acaba, nos deixa deprimidos como se tivéssemos perdido uma amiga.

São 59 capítulos relativamente curtos e muito ágeis, cheios de reviravoltas e finais surpreendentes que nos fazem aguardar ansiosos pelo próximo.

Como é típico das novelas, todos os personagens são aparentados e todas as tramas acabam se conectando de alguma maneira no final. Realismo nunca foi, nem nunca será, o melhor atrativo desse gênero narrativo.

Melhor é sempre desligar um pouco o botão do ceticismo e aproveitar as reflexões que, quando bem feitas, essas histórias podem apresentar.

Em Grandes Esperanças, temas como a culpa, o rancor, a ingratidão e a imoralidade são vividos intensamente por Pip – personagem que, diante da perspectiva de um futuro brilhante, renega o passado humilde e as pessoas que um dia fizeram parte dele. Destaque para o personagem Joe, o rústico e afetuoso ferreiro que age como o primeiro protetor de Pip. As passagens protagonizadas por ele durante a infância de Pip são de extrema doçura e simplicidade.

Comovente sem ser meloso, profundo e ao mesmo tempo divertido, Grandes Esperanças é celebrada como uma das narrativas mais perfeitas de Charles Dickens. Uma qualidade que, obviamente, nem todas as novelas conseguem oferecer, mas que mesmo assim engrandece e faz do gênero um dos mais importantes do nosso tempo.